Resumo
O Salmo 23 é um dos textos mais conhecidos da literatura bíblica. Entretanto, sua frase inicial tem sido alvo de debate linguístico: a tradução tradicional “nada me faltará” contrasta com interpretações que defendem o sentido “Ele não me faltará” como mais fiel ao hebraico original. Este artigo apresenta uma análise acadêmica baseada em fontes históricas, filológicas e litúrgicas antigas, identificando o significado real do verso conforme atestado nos manuscritos bíblicos.
1. O Texto Hebraico Original
O Salmo 23:1, no hebraico massorético, lê-se:
יְהוָה רֹעִי לֹא אֶחְסָר
Adonai ro‘i, lo’ ’echsar
Uma tradução literal palavra por palavra é:
- YHWH (o Senhor)
- ro‘i (é meu pastor)
- lo’ (não)
- ’echsar (faltarei / carecerei / terei falta)
Portanto, a estrutura sintática hebraica é:
“O Senhor é meu pastor; não carecerei.”
(O verbo está na forma 1ª pessoa do singular, “eu não faltarei / eu não carecerei”.)
2. O Problema Tradutório: “Nada me faltará” x “Ele não me faltará”
A tradução tradicional, presente em versões como:
- Vulgata Latina (Jerônimo, séc. IV): Dominus regit me, et nihil mihi deerit
- Septuaginta (grego, séc. III–II a.C.): Kyrios poimainei me, kai ouden husterēsei me
- Almeida (séculos XVII–XVIII): “O Senhor é o meu pastor; nada me faltará”
segue o sentido “nada me faltará”, uma ampliação interpretativa já atestada na literatura judaica antiga.
Contudo, filólogos observam que o hebraico pode ser igualmente traduzido como:
“O Senhor é meu pastor; eu não faltarei.”
ou
“O Senhor é meu pastor; Ele não me faltará.”
Essas duas alternativas refletem melhor o valor existencial do verbo ’echsar, que indica:
- falta de algo, ou
- falta de alguém (o próprio Deus).
Referências acadêmicas:
- Brown–Driver–Briggs Hebrew Lexicon, s.v. חסר
- The Hebrew and Aramaic Lexicon of the Old Testament (HALOT), Koehler & Baumgartner
- The JPS Hebrew-English Tanakh, Jewish Publication Society
3. O Sentido Hebraico Existencial: “Ele não me faltará”
Diversos estudiosos argumentam que, na poesia hebraica, o verbo ’echsar possui forte conotação relacional e existencial, e não apenas material.
Portanto, enquanto:
- “nada me faltará” → ênfase em necessidades materiais,
- “Ele não me faltará” → ênfase teológica: a presença divina.
Rabinos medievais também enfatizam essa nuance:
Rashi (séc. XI)
“Quando o Santo, bendito seja Ele, é o pastor de alguém, essa pessoa não é deixada faltar — nem Ele a deixa faltar.”
Ibn Ezra (séc. XII)
“Aquele a quem Deus guia, não ficará privado nem de Deus.”
Assim, a interpretação “Ele não me faltará” é linguisticamente possível e teologicamente coerente com o simbolismo do pastor que nunca abandona suas ovelhas.
4. Contexto Histórico da Metáfora do Pastor
No Antigo Oriente Próximo, a figura do pastor era usada como:
- símbolo de liderança política
- símbolo de cuidado divino
- imagem de proteção e provisão
Fontes históricas paralelas:
- Inscrições reais da Mesopotâmia chamam reis de “pastores do povo”.
- O deus egípcio Osíris era descrito como “pastor dos homens”.
- Em Ugarit, o deus El é chamado “pastor do rebanho”.
Na Bíblia:
- Gênesis 48:15: Deus é chamado “pastor”.
- Salmo 80:1: “Ó Pastor de Israel…”
- Ezequiel 34: Deus condena pastores humanos e se declara pastor do povo.
Logo, Salmo 23 se insere numa longa tradição do Oriente Antigo, onde a função do pastor indica:
- presença,
- cuidado,
- proteção,
- orientação.
A metáfora não indica supérfluo material, mas proximidade e fidelidade divina.
5. Implicações Teológicas das Duas Traduções
1) “Nada me faltará”
- Enfatiza provisão material e segurança.
- Tornou-se comum em pregações modernas evangélicas.
- Facilmente associada a interpretações de prosperidade.
2) “Ele não me faltará”
- Enfatiza a presença divina como suficiente.
- Se aproxima mais da espiritualidade judaica original.
- Harmônica com a temática do Salmo:
“Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte… Tu estás comigo” (v. 4).
A evidência textual e teológica sugere que a segunda opção é mais coerente com o hebraico bíblico.
6. Conclusão
Com base na análise linguística, histórica e textual, concluímos:
- O hebraico original não afirma literalmente “nada me faltará”.
- A forma mais fiel ao texto massorético é:
“O Senhor é meu pastor; eu não carecerei / eu não faltarei / Ele não me faltará.” - A ênfase do salmo é a presença de Deus, não abundância material.
- Traduções tradicionais seguiram interpretações teológicas antigas, mas não refletem toda a riqueza semântica do hebraico.
- O sentido existencial — Deus não nos falta — é o cerne da composição poética atribuída a Davi.
Referências Acadêmicas (Bibliografia)
Obras de Hebraico e Linguística Bíblica
- Brown, F.; Driver, S.; Briggs, C. A Hebrew and English Lexicon of the Old Testament (BDB). Oxford, 1906.
- Koehler, L.; Baumgartner, W. The Hebrew and Aramaic Lexicon of the Old Testament (HALOT). Leiden: Brill, 1994.
- Tov, Emanuel. Textual Criticism of the Hebrew Bible. Minneapolis: Fortress Press, 2012.
Estudos do Salmo 23
- Craigie, Peter. Word Biblical Commentary: Psalms 1–50. Waco: Word Books, 1983.
- Goldingay, John. Psalms: Volume 1 (Psalms 1–41). Baker Academic, 2006.
- Alter, Robert. The Book of Psalms: A Translation with Commentary. Norton, 2007.
Fontes Litúrgicas e Manuscritos
- Biblia Hebraica Stuttgartensia (BHS).
- Septuaginta: Rahlfs-Hanhart Edition.
- Dead Sea Scrolls Study Edition (Martínez & Tigchelaar).
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