“O Senhor é o Meu Pastor”: Um Estudo Histórico do Salmo 23

Por Professor Leandro , 8 Dezembro 2025

Resumo

O Salmo 23 é um dos textos mais conhecidos da literatura bíblica. Entretanto, sua frase inicial tem sido alvo de debate linguístico: a tradução tradicional “nada me faltará” contrasta com interpretações que defendem o sentido “Ele não me faltará” como mais fiel ao hebraico original. Este artigo apresenta uma análise acadêmica baseada em fontes históricas, filológicas e litúrgicas antigas, identificando o significado real do verso conforme atestado nos manuscritos bíblicos.

1. O Texto Hebraico Original

O Salmo 23:1, no hebraico massorético, lê-se:

יְהוָה רֹעִי לֹא אֶחְסָר
Adonai ro‘i, lo’ ’echsar

Uma tradução literal palavra por palavra é:

  • YHWH (o Senhor)
  • ro‘i (é meu pastor)
  • lo’ (não)
  • ’echsar (faltarei / carecerei / terei falta)

Portanto, a estrutura sintática hebraica é:

“O Senhor é meu pastor; não carecerei.”

(O verbo está na forma 1ª pessoa do singular, “eu não faltarei / eu não carecerei”.)

2. O Problema Tradutório: “Nada me faltará” x “Ele não me faltará”

A tradução tradicional, presente em versões como:

  • Vulgata Latina (Jerônimo, séc. IV): Dominus regit me, et nihil mihi deerit
  • Septuaginta (grego, séc. III–II a.C.): Kyrios poimainei me, kai ouden husterēsei me
  • Almeida (séculos XVII–XVIII): “O Senhor é o meu pastor; nada me faltará”

segue o sentido “nada me faltará”, uma ampliação interpretativa já atestada na literatura judaica antiga.

Contudo, filólogos observam que o hebraico pode ser igualmente traduzido como:

“O Senhor é meu pastor; eu não faltarei.”

ou

“O Senhor é meu pastor; Ele não me faltará.”

Essas duas alternativas refletem melhor o valor existencial do verbo ’echsar, que indica:

  • falta de algo, ou
  • falta de alguém (o próprio Deus).

Referências acadêmicas:

  • Brown–Driver–Briggs Hebrew Lexicon, s.v. חסר
  • The Hebrew and Aramaic Lexicon of the Old Testament (HALOT), Koehler & Baumgartner
  • The JPS Hebrew-English Tanakh, Jewish Publication Society

3. O Sentido Hebraico Existencial: “Ele não me faltará”

Diversos estudiosos argumentam que, na poesia hebraica, o verbo ’echsar possui forte conotação relacional e existencial, e não apenas material.

Portanto, enquanto:

  • “nada me faltará” → ênfase em necessidades materiais,
  • “Ele não me faltará” → ênfase teológica: a presença divina.

Rabinos medievais também enfatizam essa nuance:

Rashi (séc. XI)

“Quando o Santo, bendito seja Ele, é o pastor de alguém, essa pessoa não é deixada faltar — nem Ele a deixa faltar.”

Ibn Ezra (séc. XII)

“Aquele a quem Deus guia, não ficará privado nem de Deus.”

Assim, a interpretação “Ele não me faltará” é linguisticamente possível e teologicamente coerente com o simbolismo do pastor que nunca abandona suas ovelhas.

4. Contexto Histórico da Metáfora do Pastor

No Antigo Oriente Próximo, a figura do pastor era usada como:

  1. símbolo de liderança política
  2. símbolo de cuidado divino
  3. imagem de proteção e provisão

Fontes históricas paralelas:

  • Inscrições reais da Mesopotâmia chamam reis de “pastores do povo”.
  • O deus egípcio Osíris era descrito como “pastor dos homens”.
  • Em Ugarit, o deus El é chamado “pastor do rebanho”.

Na Bíblia:

  • Gênesis 48:15: Deus é chamado “pastor”.
  • Salmo 80:1: “Ó Pastor de Israel…”
  • Ezequiel 34: Deus condena pastores humanos e se declara pastor do povo.

Logo, Salmo 23 se insere numa longa tradição do Oriente Antigo, onde a função do pastor indica:

  • presença,
  • cuidado,
  • proteção,
  • orientação.

A metáfora não indica supérfluo material, mas proximidade e fidelidade divina.

5. Implicações Teológicas das Duas Traduções

1) “Nada me faltará”

  • Enfatiza provisão material e segurança.
  • Tornou-se comum em pregações modernas evangélicas.
  • Facilmente associada a interpretações de prosperidade.

2) “Ele não me faltará”

  • Enfatiza a presença divina como suficiente.
  • Se aproxima mais da espiritualidade judaica original.
  • Harmônica com a temática do Salmo:
    “Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte… Tu estás comigo” (v. 4).

A evidência textual e teológica sugere que a segunda opção é mais coerente com o hebraico bíblico.

6. Conclusão

Com base na análise linguística, histórica e textual, concluímos:

  1. O hebraico original não afirma literalmente “nada me faltará”.
  2. A forma mais fiel ao texto massorético é:
    “O Senhor é meu pastor; eu não carecerei / eu não faltarei / Ele não me faltará.”
  3. A ênfase do salmo é a presença de Deus, não abundância material.
  4. Traduções tradicionais seguiram interpretações teológicas antigas, mas não refletem toda a riqueza semântica do hebraico.
  5. O sentido existencial — Deus não nos falta — é o cerne da composição poética atribuída a Davi.

Referências Acadêmicas (Bibliografia)

Obras de Hebraico e Linguística Bíblica

  • Brown, F.; Driver, S.; Briggs, C. A Hebrew and English Lexicon of the Old Testament (BDB). Oxford, 1906.
  • Koehler, L.; Baumgartner, W. The Hebrew and Aramaic Lexicon of the Old Testament (HALOT). Leiden: Brill, 1994.
  • Tov, Emanuel. Textual Criticism of the Hebrew Bible. Minneapolis: Fortress Press, 2012.

Estudos do Salmo 23

  • Craigie, Peter. Word Biblical Commentary: Psalms 1–50. Waco: Word Books, 1983.
  • Goldingay, John. Psalms: Volume 1 (Psalms 1–41). Baker Academic, 2006.
  • Alter, Robert. The Book of Psalms: A Translation with Commentary. Norton, 2007.

Fontes Litúrgicas e Manuscritos

  • Biblia Hebraica Stuttgartensia (BHS).
  • Septuaginta: Rahlfs-Hanhart Edition.
  • Dead Sea Scrolls Study Edition (Martínez & Tigchelaar).

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