Eu sou o que sou

Por Professor Leandro , 12 Dezembro 2025

Resumo

A expressão “Eu sou o que sou” constitui uma das formulações mais densas da história do pensamento ocidental, atravessando campos como a teologia, a filosofia, a linguística e a ontologia. Presente de forma paradigmática no texto bíblico do Êxodo (3,14), a frase tornou-se eixo conceitual para reflexões sobre identidade, ser, existência e transcendência. Este artigo analisa a origem histórica da expressão, suas variações semânticas, suas interpretações filosóficas clássicas e modernas, bem como sua função simbólica e conceitual na construção do pensamento sobre o ser.

 

1. Introdução

Poucas expressões tiveram impacto tão duradouro e transversal quanto “Eu sou o que sou”. Sua aparente simplicidade esconde uma complexidade conceitual que alimentou debates centrais da metafísica: o que é o ser? O que significa existir? Existe uma essência anterior à existência? A frase tornou-se um ponto de interseção entre revelação religiosa e especulação racional.

Este trabalho tem por objetivo examinar:
(a) a origem histórica da expressão;
(b) seus significados possíveis;
(c) suas funções filosóficas e teológicas;
(d) seus desdobramentos na modernidade.

2. Origem histórica e textual

2.1 O contexto bíblico

A formulação surge no Êxodo 3,14, quando Moisés pergunta a Deus qual é o Seu nome. A resposta, no hebraico original, é:

אֶהְיֶה אֲשֶׁר אֶהְיֶה
(Ehyeh Asher Ehyeh)

O verbo היה (hayah) significa “ser”, “tornar-se” ou “acontecer”. O tempo verbal utilizado é o imperfeito, indicando ação contínua ou futura. Assim, traduções possíveis incluem:

  • “Eu sou o que sou”
  • “Eu serei o que serei”
  • “Eu sou aquele que está sendo”

Essa ambiguidade temporal já indica que não se trata de uma simples afirmação identitária, mas de uma afirmação ontológica aberta.

3. Significado semântico e linguístico

Do ponto de vista linguístico, a expressão é tautológica, isto é, não define algo por atributos externos, mas por si mesma. No entanto, essa tautologia não é vazia: ela nega a possibilidade de definição externa.

Ao afirmar “Eu sou o que sou”, o sujeito:

  • Não se submete a categorias;
  • Não se define por função, relação ou finalidade;
  • Afirma a própria existência como fundamento.

Trata-se, portanto, de uma negação da linguagem comum aplicada ao absoluto.

4. Interpretação teológica

Na tradição judaico-cristã, a expressão cumpre três funções principais:

  1. Autoexistência – Deus não depende de nada para existir.
  2. Imutabilidade – O ser divino não muda nem se desenvolve.
  3. Inapreensibilidade – Deus não pode ser plenamente compreendido ou nomeado.

Autores como Maimônides defenderam que essa resposta é, na verdade, uma recusa em fornecer um nome, pois qualquer nome limitaria o absoluto.

5. Interpretação filosófica clássica

5.1 A metafísica do ser

Em Aristóteles, o ser (to on) é aquilo que se diz de muitas maneiras, mas sempre remete à substância. Já na tradição cristã medieval, especialmente em Tomás de Aquino, a expressão é interpretada como a definição máxima do ser:

Deus é ipsum esse subsistens — o próprio ser subsistente.

Ou seja, enquanto os entes têm ser, Deus é o ser.

6. Desdobramentos na filosofia moderna

6.1 Existencialismo

No século XX, a expressão ganha nova leitura. Em Jean-Paul Sartre, embora fora do contexto teológico, a ideia de identidade construída ressoa na máxima:

“A existência precede a essência.”

Aqui, “eu sou o que sou” pode ser lido como:

  • O indivíduo não possui uma essência fixa;
  • Ele se constrói por suas ações.

6.2 Fenomenologia

Em Martin Heidegger, a questão do ser (Seinsfrage) retorna com força. O ser não é um ente, mas aquilo que possibilita que os entes sejam. A frase do Êxodo antecipa, de modo pré-filosófico, essa distinção fundamental.

7. Para que serve essa expressão?

A função da expressão pode ser sintetizada em quatro níveis:

  1. Teológico: afirmar a transcendência absoluta.
  2. Ontológico: estabelecer o ser como fundamento.
  3. Epistemológico: indicar os limites da linguagem.
  4. Existencial: inspirar reflexões sobre identidade e autenticidade.

Ela não responde “quem” ou “o quê”, mas coloca o problema do ser.

8. Considerações finais

“Eu sou o que sou” não é uma definição, mas uma fronteira. Ela marca o ponto onde a linguagem deixa de explicar e passa a indicar. Sua força reside justamente em não se deixar esgotar: cada época a relê segundo suas próprias questões fundamentais.

Mais do que uma resposta, a expressão é um dispositivo filosófico permanente, que obriga o pensamento a confrontar o mistério do existir.

Referências

  • BÍBLIA. Êxodo 3,14. Texto hebraico massorético.
  • ARISTÓTELES. Metafísica. Livro IV.
  • TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, I, q. 3.
  • MAIMÔNIDES. Guia dos Perplexos.
  • HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes.
  • SARTRE, Jean-Paul. O Existencialismo é um Humanismo.
  • GILSON, Étienne. O Ser e a Essência.
  • RICOEUR, Paul. Finitude e Culpa.

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